A Bienal das Amazônias desembarcou em Boa Vista, capital de Roraima, com o projeto de itinerância para realizar obras públicas em espaços urbanos. Quatro artistas ocupam a cidade com a exibição de trabalhos inspirados no conceito de ancestralidade e nos saberes da floresta.
O artista indígena macuxi DoneS’Aunuru apresenta a obra “Cores de sangue e terra: ancestralidade em camadas”. São pinturas que tratam da ancestralidade feminina como presença contínua, força e gesto de gratidão que ancora o futuro nas raízes da terra.
DoneS’Aunuru utiliza pigmentos naturais (jenipapo, urucum e argila) e tintas acrílicas em tecido para mostrar os ciclos da vida. “As cores utilizadas na obra refletem essa fusão de saberes e tempos: o vermelho do urucum, o azul escuro do jenipapo e as tonalidades vibrantes das tintas acrílicas criam uma linguagem visual que transita entre o ancestral e o contemporâneo. A presença das tintas naturais reafirma os vínculos com a terra, enquanto a tinta acrílica incorpora o urbano e as reexistências cotidianas”, afirma DoneS.
Segundo o artista macuxi, “Cores de sangue e terra” é uma obra em camadas vivas — feita de memória, corpo e território. “O sangue, cor primeira da existência, ocupa o centro da composição como expressão de força, resistência e continuidade. Ele marca o início da vida, mas também o luto, a luta e os laços herdados entre gerações”, ressalta DoneS. A exposição será exibida na Casa da Mulher Brasileira, localizada na rua Uraricoera, S/N, em São Vicente.
Natural do município roraimense de Uiramutã, o artista indígena do povo patamona Isaias Miliano trabalha há mais de três décadas com arte plástica contemporânea. Na itinerância da Bienal das Amazônias, ele vai apresentar a obra “Mutação: do ventre das águas ao peixe de metal”, um alerta para a contaminação dos rios amazônicos por mercúrio, metal pesado utilizado no garimpo ilegal que ameaça os ecossistemas e o modo de vida tradicional.
Segundo Isaias, as obras convidam o público a enxergar “um ciclo invisível”. “Ao consumir os peixes de metal, nos tornamos metal também. O metal que sangra dos rios e habita os peixes atravessa nossos corpos e ameaça a memória dos povos que sempre guardaram a floresta”, assinala. A obra de Isaias será exibida no Prédio Anikê, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), cedido ao Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena para a realização de projetos acadêmicos
A artista plástica Daya Roraima, professora de Artes Visuais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), vai ocupar a Praça do Centro Cívico, local onde fica localizado o Palácio do Governo de Roraima, com a obra “Guardiã dos saberes da Koko'Non”, escultura em cerâmica inspirada nos ceramistas do povo originário macuxi. A escultura tem o mesmo barro que as ceramistas macuxi utilizam na fabricação de panelas.
Segundo Daya, a peça resgata os conhecimentos e regras para a produção cerâmica do povo macuxi, além de refletir sobre os rituais que envolvem todo o processo desse fazer ancestral.
A artista Julieth Giovanna participa da itinerância de Boa Vista com a obra “Cabeça de guia”, instalação que reúne técnicas mistas de pintura, tintas orgânicas e escultura. O trabalho será exposto no Terminal de Ônibus Urbano José Campanha Wanderley, localizado no centro da capital de Roraima.
Julieth atua nas artes visuais, na moda e na produção cultural. Criadora da marca Babetrash, do Studio Furtakor (@furtakorr) e integrante de iniciativas como o coletivo Kabokada, ela compartilha suas experiências como recurso poético.
“Cabeça que guia” é baseada na obra “Guia” (pintura já existente, de autoria de Julieth) que surge de vivências espirituais e ritualísticas de consagração da medicina da floresta. “Minha obra representa o contato com o mundo espiritual, em especial seres da floresta que carregam elementos que encontro nas religiões de matriz africana e na fé indígena. Através da consagração da medicina da floresta e estudos esotéricos, é como uma imagem que gera reflexão e conexão com os povos de terreiro e espiritualistas”, informa a artista.
Protagonismo
A itinerância da Bienal das Amazônias amplia o protagonismo do cenário artístico e cultural das Amazônias, destaca Vânia Leal, curadora e diretora de Projetos Especiais da Bienal. “Para nós, a itinerância abre debates aproximados e atravessa territórios”, afirma.
Vânia Leal informa que Boa Vista é a primeira capital da Amazônia Brasileira a abrir o Programa de Obras Públicas. “Cada Estado da Amazônia brasileira vai realizar obras públicas com artistas locais que não estavam na primeira edição da Bienal, mas que passam a integrar o programa Bienal. Ter artistas locais abre caminhos de comunhão com arte, política e diálogo”, observa.
As obras públicas consolidam a proposta da Bienal das Amazônias de pensar a região com todas as suas complexidades e abraçar as comunidades, tendo como propósito a transformação social por meio da arte. Para Lívia Condurú, presidente do Instituto Bienal das Amazônias, uma das funções da Bienal é aplicar uma pedagogia da experiência, com inclusão e acessibilidade, e levar a arte das Amazônias a diferentes ambientes e espaços da imensidão da floresta.
A Bienal já passou por Marabá (PA), Canaã dos Carajás (PA) e São Luís (MA). Além das intervenções urbanas, as cidades que compõem a rota da itinerância recebem um recorte da 1ª edição da Bienal das Amazônias, que ocorreu em Belém entre agosto e novembro de 2023.
Artistas ecoam vozes da floresta
A diretora de Projetos Especiais da Bienal das Amazônias, curadora Vânia Leal, destacou a itinerância em Boa Vista como um grande processo de construção democrática. “Nós estamos criando obras públicas na cidade de Boa Vista. De quatro artistas, em várias linguagens artísticas: escultura em cerâmica, pintura, muralismo. Esses trabalhos democratizam o acesso à cultura com a transformação do espaço urbano: rodoviária, ruas, praças”, afirma.
Vânia informou que os artistas e as obras selecionados dialogam com conceitos atuais, numa perspectiva crítica mas também afetiva e ancestral. “Fizemos uma leitura de portfólio e eu considero as obras dos quatro artistas selecionados muito significativas no que se refere às questões que reivindicam lugares de pautas necessárias”, disse. “São quatro artistas que ecoam a voz de dentro da floresta. Estou muito satisfeita por trazer essa discussão para o contexto da Bienal das Amazônias.”
Para Vânia, a Bienal é muito representativa da produção artística em todos os territórios da itinerância. “Nós, amazônidas, estamos falando para os nossos, para os seus e para o mundo. A Bienal tem uma representatividade artística no território brasileiro da arte. A Bienal provoca o diálogo com a cidade, com os artistas locais, com os agentes culturais. Chegamos em Roraima abrindo diálogo e escuta muito delicada e pausada, no tempo amazônico, com artistas e entidades ancestrais, como a terra Macunaimî, uma terra sagrada”, destacou a curadora.
Por: Alexsandra Sampaio